Resumo:
A vinculação entre
histeria feminina e sexualidade, amor e saúde, levaram-nos a traçar um paralelo
entre a Gynaicologia de Hipócrates e a obra Inocência de
Visconde de Taunay. O objetivo desta comunicação, portanto, é demonstrar como a
tensão entre os ideais médicos e literários caminham juntos e se mesclam na
tentativa de delinear o perfil feminino.
Palavras-chave:
Gynaicologia; literatura brasileira; histeria; sexualidade feminina.
Texto:
O
projeto de pesquisa “Releituras do
feminino a partir da Gynaicologia hipocrática” é um típico trabalho que se
desdobra em múltiplas abordagens e infinitos direcionamentos de olhares acerca
do que é a natureza da mulher helênica na antiguidade clássica. E como base
para nossa pesquisa ficou decidido traduzir e trabalhar com o Corpus Hippocraticum de Hipócrates, em
particular com a obra Gynaicologia .
Antes
de abordarmos qualquer perspectiva é importante esclarecer a visão que a antiguidade
clássica tinha da mulher. Como já foi amplamente divulgado, a mulher não era
vista com bons olhos na Grécia Antiga, e lidar com a noção de feminino é como
caminhar por lugares obscuros, com sombras e fantasmas, permeados por inúmeras
representações negativas. Em geral, os homens eram supervalorizados e as
mulheres eram menosprezadas, a definição de physis
feminina está pautada na diferença: homens versus
mulheres. Os homens são a força da vida, enquanto a mulher é apenas o
receptáculo da vida.
Os
direitos das mulheres na pólis eram
mínimos. Elas eram submissas e controladas por seus maridos e nem tinham o
direito a palavra, lógos. O olhar
masculino frente à mulher a transformava em um objeto, e o seu “pseudodomínio”
se restringia apenas ao oikos familiar.
Nessa
perspectiva, as mulheres eram seres irracionais, autômatas, ignorantes e sem
nenhuma criatividade, talvez a única coisa que fizessem corretamente era gerar
filhos e mesmo assim ainda precisavam do homem para tal feito.
No
imaginário da Grécia antiga, o próprio Platão costumava desvalorizar a mulher
pelo que ela sabia fazer, a começar pela maternidade e responsabilizava o útero
pelas doenças femininas.
Nas
mulheres também e pelas mesmas razões, o que se chama a matriz ou útero é um
animal que vive nelas com o desejo de procriar. Quando ele fica muito tempo
estéril depois do período da puberdade, ele tem dificuldade em suportar isso,
indigna-se, erra por todo o corpo, bloqueia os canais do sopro, impede a
respiração, causa um grande incomodo e origina doenças de toda a espécie, até que,
o desejo e o amor unindo os dois sexos, eles possam colher um fruto, como numa
árvore, e semear na matriz, como num sulco [...]. Tal é a origem das mulheres e
de todo o sexo feminino (PLATÃO, 1986, p. 154).
Aristóteles
também não via com bons olhos a mulher, costumava dizer que a mulher tinha o
corpo mais frio que o do homem, o homem possuía o calor da vida e a mulher era
o elemento frígido.
Da mesma forma que a humanidade é
mais perfeita que o resto dos animais, dentro da humanidade o homem é o mais
perfeito que a mulher, e a razão dessa perfeição é seu excesso de calor, pois o
calor é instrumento básico da natureza.
(ARISTÓTELES, 1957, p. 53).
Em
resumo, todo o período clássico supervalorizava os homens pela sua força viril
e menosprezavam a mulher, era como se o corpo da mulher fosse o inverso do
homem, uma vez que este possuía espírito e energia, sendo a mulher um corpo
débil, frágil, frio e “atrofiado”.
No mais, um menino se parece na
realidade com uma mulher, no seu físico e uma mulher é como se fosse um homen
estéril. [...]é importante resaltar que elas são deformadas em qualquer aspecto
da sua formação, por exemplo, na mula, o problema não é tão evidente como em
seres humanos.
Ou
ainda:
[...]embora os homens e as
mulheres sejam “contrários”, não são espécies separadas porque diferem apenas
na matéria e não na família, assim como o negro difere do branco somente na
cor. As mulheres diferem dos homens, não como o círculo difere do triângulo, mas
como o círculo ou o triângulo de um material diferem do círculo ou triângulo do
outro material.
(Cf. ARISTÓTELES, 2001 I 9, 1058
a 32-b19).
Nesse
contexto de uma sociedade extremamente misógina, apenas um homem se interessou
em cuidar das enfermidades femininas, seu nome era: Hipócrates.
Hipócrates
nasceu em Cós no século V a.C, é considerado o “pai da medicina”, e durante
toda sua vida se dedicou a essa área de estudo, pois é a partir de seus estudos
minuciosos que muitas doenças foram descobertas e diversas formas de cura foram
desenvolvidas pelo grande médico e por seus sucessores.
A
essas mulheres ocultas, ele destinou obras específicas: para as que eram
virgens, as que não eram virgens, as que tiveram filhos, etc. E é graças a esse
interesse de Hipócrates que se tornou possível delimitar mais profundamente a physis da mulher helênica clássica.
Sendo
assim, a busca pela physis feminina
passa a ser o objeto central do projeto que se desenvolve, principalmente a da
mulher helênica – que ficou embaçada durante muitos séculos, devido ao
posicionamento de uma sociedade que transformou a mulher em um objeto que se
restringe, unicamente, à procriação.
Torna-se
relevante ressaltar que, nossa motivação também se deve ao fato de não haver
uma tradução da obra Gynaicologia em
Língua Portuguesa. E ao buscar o novo (tradução e comparação) e desejar fazer
uma conexão dessas personagens femininas clássicas com as musas da nossa
literatura brasileira, desenvolvi minha pesquisa.
O
mistério instigante da forma física e das características psicológicas dessas
mulheres helênicas que, geralmente, estão à margem da sociedade, nunca foi algo
muito discutido nem considerado tão relevante à crítica literária tanto
brasileira quanto clássica. Portanto, qual a semelhança entre essas mulheres helênicas
e as nossas musas dos grandes clássicos brasileiros?
Após
traduzirmos alguns capítulos da obra Gynaicologia
comprovamos que muito do que ouvimos e lemos no senso comum está diretamente
relacionado ao que já era divulgado na sociedade helênica.
Afirmamos,
muitas vezes, embora erroneamente que estamos produzindo novas tecnologias,
filosofia, obras literárias originais, etc. Quando na realidade, a verdade que
nos espreita é que estamos dando voltas num círculo perfeito.
Sob
esse mesmo prisma, acreditamos, ingenuamente, que estamos criando novas gírias
e ditos populares, mas está claro que estamos apenas repetindo um passado até
então esquecido. Para exemplificar podemos citar um caso que ocorreu no Górgias, diálogos de Platão, em que
Sócrates ao cumprimentar um amigo o chamava de philé Kefalé, que em
grego, quer dizer querida(o)/amada(o) cabeça, que era um cumprimento a um nobre
no ser humano/ uma boa pessoa ou querida.
Até os dias de hoje, mesmo sem saber, os jovens costumam utilizar essa forma de
saudação com os amigos ou como forma de adjetivação àqueles que possuem uma
inteligência única: “Fala aí, cabeça!” , “Nossa você é muito cabeça.”
Isso
talvez ocorra, porque muito do que existe no período clássico é desconhecido ou
pouco divulgado nas próprias comunidades acadêmicas. Então, torna-se comum as
inúmeras divagações equivocadas.
Em
nossa pesquisa podemos observar que, alguns traços do corpo feminino e algumas
características psicológicas, no que se refere as enfermidades das mulheres
virgens ou que não tiveram filhos, e que são muito divulgadas na
contemporaneidade, como expressões populares, já eram propagadas no período
clássico. Como é o caso de: “Quando casar passa...”, “A menstruação é a saúde
da mulher...”, como vemos no fragmento que se segue: “...quando uma mulher que
não teve filhos não tem sua regra manifestada e esta não é capaz de encontrar
caminho para fora, a mulher ficará enferma.” (Gynaicologia, 1º parágrafo
do capítulo 2)
Hipócrates
– mesmo que saibamos que não existia tecnologia suficiente naquele tempo para
isso – delineou aspectos do corpo da mulher em ampla comparação com o corpo do
homem, demonstrando que a mulher possui uma certa fragilidade física, como já
diziam os filósofos de sua época, e demonstra isso no seguinte fragmento: “Isto
tenho para mim como antes disse, o referido, ser a carne da mulher mais macia e
de aspecto delicado que a do homem”(Gynaicologia, 4º parágrafo do capítulo
1). Ou ainda: “sendo o corpo (da mulher)
mais úmido, vindo da cavidade do ventre em maior número e mais rápido que o
homem, e sendo a mulher de carne mais delicada[...]Porque a mulher tem o sangue
mais quente que o homem” (Gynaicologia, 6º parágrafo do capítulo 1).
Nesse
terreno sinuoso, encontramos uma mulher virgem ou que não teve filhos, que
sofria de inúmeros distúrbios físicos e psicológicos quando não tinha relações
sexuais ou quando sua menstruação faltava, como segue:
E, certamente, sofrerá mais com a
falta da menstruação, a mulher vomitará inflamação, chegará forte sede, posto
que ainda tendo inflamação da cavidade do ventre as partes internas do útero
são enchidas de sangue e quando tocada (a mulher) sentirá dor, mais no abdômen;
vez ou outra terá febre aguda, é
possível que na parte interna do útero faça barulho nas “tripas” vez ou outra
por causa da agitação do sangue que não circula, a cavidade do útero não dispersará para fora
(menstruação); a urina purificará a bexiga; depois que o útero tiver encontrado
a boca do estômago, que está nervoso, fazendo sentir um fluxo de dor na
cavidade do ventre e em toda as costas; a língua da mesma pára e carecendo de
movimento não fala; sentirá “mordidas” no estômago, originário do intestino
grosso amarelento; sofrerá ao respirar; estará agitada e deixará cair em si
mesma inflamação.
(Gynaicologia, último parágrafo,
sintomas na mulher sem menstruação, tradução minha)
Outras somatizações podem ocorrer
no corpo da mulher com a falta da relação sexual, como segue no fragmento:
O motivo pelo qual não ocorre
este fechamento é essa mulher não ter relações sexuais. Em três meses ela se
sentirá melhor, caso o fluxo menstrual saia antes. Entretanto, se não acontecer
isto, a mulher sofrerá: algumas vezes serão sentidos falta de ar por essa mulher e outras vezes será apoderada
pela febre e calafrios, assim como uma dor na região lombar. Cada uma das
regiões simétricas situadas de um lado e do outro da coluna vertebral, abaixo
ou após das costelas; costas, dorso. É possível que se sinta sufocada e fique
agitada (Gynaicologia, 9º parágrafo do Capítulo 2, tradução minha).
Como
vemos, esses distúrbios que alguns julgam serem descobertas de Freud ou até
mesmo de Jung, Hipócrates já explicitava no século V a.C em suas obras.
A
partir desse olhar, direcionei minha pesquisa a comparar alguns fragmentos do
texto de Hipócrates com a obra de Visconde de Taunay: Inocência.
Na
obra de Taunay, encontramos Inocência uma menina virgem, de quinze anos e meio,
cuja beleza era muito singular, mas que estava doente. Uma enfermidade que até
seu pai, extremamente machista, acreditava ser obra de “mal olhado”, como
podemos constatar no fragmento de Taunay: “[...]Nocência para nós está
perdida...para nós, porque um homem lhe deitou um mau olhado...” (Inocência, Visconde de Taunay).
Nesse
contexto complexo em que ninguém conseguia curar a jovem, aparece um rapaz
muito atraente e doce que conquista o coração de Inocência.
Seu
nome é Cirino, um “pseudomédico” que se dizia muito experiente em curar diversos
tipos de enfermidades. Cirino é o típico charlatão, que se aproveita daqueles
que estão doentes à espera de uma possível cura, quase que milagrosa:
Curandeiro, simples curandeiro,
ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi
parecendo, a si próprio, título inerente a sua pessoa e a que tinha
incontestável direito. Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada
e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no
íntimo do seu caráter se haviam
insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo,
oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que
sempre vivera.[...] Por toda a parte entra, com efeito, o doutor; penetra no
interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesa dos
hóspedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem caído do céu e junto ao
qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já enfermos, mas fanatizados
crentes, que durante largos anos se haviam medicado ou por conselhos de
vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada desse Messias
depositam todas as ardentes esperanças do almejado restabelecimento.
(TAUNAY, 1972, Capítulo III O
DOUTOR, página 10)
Nessas
circunstâncias Inocência, é uma jovem
que se encontrava muito próxima da morte. Quando ela conhece os “métodos” do
médico ela apresenta um quadro de melhora considerável. O que para uns será um
milagre, para àqueles que compreendem do assunto, Inocência se curou pela
paixão que sentiu por Cirino.
-Como vai a doente? perguntou distraidamente Cirino,
cortando aquela catadupa de palavras.
-Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, e
parece quase boa. Está com outra feição. O sr. fez um milagre... (Pereira para
Cirino)
(TAUNAY, 1972, Capítulo X A CARTA DE RECOMENDAÇÃO,
página 24)
[...]
Quem sabe se a meiguice e bondade
que lhe dispensava Cirino não eram a causa única desse sentimento novo, desconhecido,
que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a florzinha do
campo? A muito obriga a gratidão. Rápidos correram esses pensamentos pela mente
de Inocência, ao passo que as suas pupilas se iam erguendo até se fixarem em
Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando entrada para ele ler claro o
que se lhe passava na alma.
-Sinto-me tão bem, disse ela com
metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca mais hei de ficar
mofina.
(TAUNAY,
1972, Capítulo XIV A REALIDADE, página 34)
O
problema todo da trama é que Inocência fora prometida para Manecão pelo seu pai.
Manecão era um homem extremamente rude e grosseiro, ainda que Inocência
desejasse sentir-se atraída pelo pretendente, seu coração já possuía um dono:
Cirino.
Nessa
atmosfera pesada, o pai de Inocência descobre a paixão da moça pelo “médico”,
agride a filha no intuito de corrigi-la, mas Inocência vendo a impossibilidade
da paixão adoece novamente.
É
importante esclarecer que, paixão aqui segue a ideia de um típico “páthos
amoroso grego” – raiz que deu origem à palavra patologia, e significa “aquilo
que toca o ser provocando nele uma mudança” –, podendo ser somatizado no corpo,
como no caso da jovem, promovendo o que ficou conhecido como histeria.
Segundo
Sigmund Freud, “histeria vem da palavra grega hystéra útero, é uma psiconeurose cujos conflitos emocionais
inconscientes surgem na forma de uma severa dissociação mental ou como sintomas
físicos (conversão), independentemente de qualquer patologia orgânica ou
estrutural conhecida, quando a ansiedade subjacente é 'convertida' num sintoma
físico” (Dicionário de Psicanálise, Elisabeth Roudinesco/Michel Plon, página
204 Estudos sobre a Histeria)
A
classificação de histeria se deve ao seguinte fragmento: “Inocência não
aparecia. Mal saía do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto não era
o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim essa sofria morte e paixão; e
amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.” (Inocência, Visconde de Taunay)
Muito
semelhante ao desfecho de uma tragédia grega, Cirino (o grande amor de
Inocência) é assassinado brutalmente pelo homem a quem o pai de Inocência
prometera sua mão. Após a notícia a jovem e bela rapariga morre de amor, como
vemos no fragmento: “Inocência, coitadinha... Exatamente nesse dia fazia dois
anos que seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’Ana
do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade.”
Para
concluir, o que podemos perceber com base nos estudos de Hipócrates, sobre as
enfermidades causadas nas mulheres virgens que podem ser caracterizadas como
histeria – é importante ressaltar que essa nomenclatura ainda não existia –
podem servir de base para uma comparação com inúmeras obras literárias
brasileiras. No entanto, não só a histeria como outras disfunções podem servir
como comparativos. A imutabilidade dos paradigmas dá-se pelo fato, de que se
Inocência tivesse se “casado” – aqui com a ideia de união sexual de dois
amantes – como propõe Hipócrates, de maneira menos clara, talvez o desfecho
teria sido outro: “Quando casar passa.” Para algumas doenças apenas o casamento
seria a solução. O que temos, portanto, na obra de Visconde de Taunay, é a
perpetuação de um paradigma clássico de que a mulher para ter uma vida saudável precisa
“alimentar” o ser que a rege, ou seja, o seu útero, e isso só é possível
através da união sexual. Caso contrário, este animal interior a consumirá e a
morte será inevitável.
Referências
bibliográficas:
ARISTÓTELES. De la
génération dês animaux. Trad. Pierre Louis. Paris: Les Belles
Lettres, 1961.
DUBY, Georges &
PERROT, Michelle. História das mulheres:
A Antiguidade. Porto: Ed. Afrontamento,1990.
IPPOKRTHS.
Peri_
gunaikei/wn prw~ton. Atenas: Kaktos, 1992.
PLATÃO. Diálogos: Timeu, Crítias, o Segundo
Alcibíades, Hípias Menor. Belém: UFPA, 1986.
ROUDINESCO, Elisabeth/
PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise.Rio
de Janeiro, Zahar, 1998.
TAUNAY, Visconde de. Inocência. Editora Primor, Rio de
Janeiro, 1972.
Tratados
Hipocráticos. Traducción y notas por Lourdes Sanz
Mingote. Madrid: Ed. Gredos, 1988.
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