quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A imutabilidade dos paradigmas por Carolina Mesquita da Costa (bolsista CNPQ-UERJ)

Resumo:
A vinculação entre histeria feminina e sexualidade, amor e saúde, levaram-nos a traçar um paralelo entre a Gynaicologia de Hipócrates e a obra Inocência de Visconde de Taunay. O objetivo desta comunicação, portanto, é demonstrar como a tensão entre os ideais médicos e literários caminham juntos e se mesclam na tentativa de delinear o perfil feminino.

Palavras-chave: Gynaicologia; literatura brasileira; histeria; sexualidade feminina.

Texto:
O projeto de pesquisa “Releituras do feminino a partir da Gynaicologia hipocrática” é um típico trabalho que se desdobra em múltiplas abordagens e infinitos direcionamentos de olhares acerca do que é a natureza da mulher helênica na antiguidade clássica. E como base para nossa pesquisa ficou decidido traduzir e trabalhar com o Corpus Hippocraticum de Hipócrates, em particular com a obra Gynaicologia .
Antes de abordarmos qualquer perspectiva é importante esclarecer a visão que a antiguidade clássica tinha da mulher. Como já foi amplamente divulgado, a mulher não era vista com bons olhos na Grécia Antiga, e lidar com a noção de feminino é como caminhar por lugares obscuros, com sombras e fantasmas, permeados por inúmeras representações negativas. Em geral, os homens eram supervalorizados e as mulheres eram menosprezadas, a definição de physis feminina está pautada na diferença: homens versus mulheres. Os homens são a força da vida, enquanto a mulher é apenas o receptáculo da vida.
Os direitos das mulheres na pólis eram mínimos. Elas eram submissas e controladas por seus maridos e nem tinham o direito a palavra, lógos. O olhar masculino frente à mulher a transformava em um objeto, e o seu “pseudodomínio” se restringia apenas ao oikos familiar.
Nessa perspectiva, as mulheres eram seres irracionais, autômatas, ignorantes e sem nenhuma criatividade, talvez a única coisa que fizessem corretamente era gerar filhos e mesmo assim ainda precisavam do homem para tal feito.
No imaginário da Grécia antiga, o próprio Platão costumava desvalorizar a mulher pelo que ela sabia fazer, a começar pela maternidade e responsabilizava o útero pelas doenças femininas.
Nas mulheres também e pelas mesmas razões, o que se chama a matriz ou útero é um animal que vive nelas com o desejo de procriar. Quando ele fica muito tempo estéril depois do período da puberdade, ele tem dificuldade em suportar isso, indigna-se, erra por todo o corpo, bloqueia os canais do sopro, impede a respiração, causa um grande incomodo e origina doenças de toda a espécie, até que, o desejo e o amor unindo os dois sexos, eles possam colher um fruto, como numa árvore, e semear na matriz, como num sulco [...]. Tal é a origem das mulheres e de todo o sexo feminino (PLATÃO, 1986, p. 154).
Aristóteles também não via com bons olhos a mulher, costumava dizer que a mulher tinha o corpo mais frio que o do homem, o homem possuía o calor da vida e a mulher era o elemento frígido.
Da mesma forma que a humanidade é mais perfeita que o resto dos animais, dentro da humanidade o homem é o mais perfeito que a mulher, e a razão dessa perfeição é seu excesso de calor, pois o calor é instrumento básico da natureza.
(ARISTÓTELES, 1957, p. 53).
Em resumo, todo o período clássico supervalorizava os homens pela sua força viril e menosprezavam a mulher, era como se o corpo da mulher fosse o inverso do homem, uma vez que este possuía espírito e energia, sendo a mulher um corpo débil, frágil, frio e “atrofiado”.
No mais, um menino se parece na realidade com uma mulher, no seu físico e uma mulher é como se fosse um homen estéril. [...]é importante resaltar que elas são deformadas em qualquer aspecto da sua formação, por exemplo, na mula, o problema não é tão evidente como em seres humanos.
Ou ainda:
[...]embora os homens e as mulheres sejam “contrários”, não são espécies separadas porque diferem apenas na matéria e não na família, assim como o negro difere do branco somente na cor. As mulheres diferem dos homens, não como o círculo difere do triângulo, mas como o círculo ou o triângulo de um material diferem do círculo ou triângulo do outro material.
(Cf. ARISTÓTELES, 2001 I 9, 1058 a 32-b19).
Nesse contexto de uma sociedade extremamente misógina, apenas um homem se interessou em cuidar das enfermidades femininas, seu nome era: Hipócrates.
Hipócrates nasceu em Cós no século V a.C, é considerado o “pai da medicina”, e durante toda sua vida se dedicou a essa área de estudo, pois é a partir de seus estudos minuciosos que muitas doenças foram descobertas e diversas formas de cura foram desenvolvidas pelo grande médico e por seus sucessores.
A essas mulheres ocultas, ele destinou obras específicas: para as que eram virgens, as que não eram virgens, as que tiveram filhos, etc. E é graças a esse interesse de Hipócrates que se tornou possível delimitar mais profundamente a physis da mulher helênica clássica.
Sendo assim, a busca pela physis feminina passa a ser o objeto central do projeto que se desenvolve, principalmente a da mulher helênica – que ficou embaçada durante muitos séculos, devido ao posicionamento de uma sociedade que transformou a mulher em um objeto que se restringe, unicamente, à procriação.
Torna-se relevante ressaltar que, nossa motivação também se deve ao fato de não haver uma tradução da obra Gynaicologia em Língua Portuguesa. E ao buscar o novo (tradução e comparação) e desejar fazer uma conexão dessas personagens femininas clássicas com as musas da nossa literatura brasileira, desenvolvi minha pesquisa.
O mistério instigante da forma física e das características psicológicas dessas mulheres helênicas que, geralmente, estão à margem da sociedade, nunca foi algo muito discutido nem considerado tão relevante à crítica literária tanto brasileira quanto clássica. Portanto, qual a semelhança entre essas mulheres helênicas e as nossas musas dos grandes clássicos brasileiros?
Após traduzirmos alguns capítulos da obra Gynaicologia comprovamos que muito do que ouvimos e lemos no senso comum está diretamente relacionado ao que já era divulgado na sociedade helênica.
Afirmamos, muitas vezes, embora erroneamente que estamos produzindo novas tecnologias, filosofia, obras literárias originais, etc. Quando na realidade, a verdade que nos espreita é que estamos dando voltas num círculo perfeito.
Sob esse mesmo prisma, acreditamos, ingenuamente, que estamos criando novas gírias e ditos populares, mas está claro que estamos apenas repetindo um passado até então esquecido. Para exemplificar podemos citar um caso que ocorreu no Górgias, diálogos de Platão, em que Sócrates ao cumprimentar um amigo o chamava de philé Kefalé, que em grego, quer dizer querida(o)/amada(o) cabeça, que era um cumprimento a um nobre no ser humano/ uma boa pessoa ou querida. Até os dias de hoje, mesmo sem saber, os jovens costumam utilizar essa forma de saudação com os amigos ou como forma de adjetivação àqueles que possuem uma inteligência única: “Fala aí, cabeça!” , “Nossa você é muito cabeça.”
Isso talvez ocorra, porque muito do que existe no período clássico é desconhecido ou pouco divulgado nas próprias comunidades acadêmicas. Então, torna-se comum as inúmeras divagações equivocadas.
Em nossa pesquisa podemos observar que, alguns traços do corpo feminino e algumas características psicológicas, no que se refere as enfermidades das mulheres virgens ou que não tiveram filhos, e que são muito divulgadas na contemporaneidade, como expressões populares, já eram propagadas no período clássico. Como é o caso de: “Quando casar passa...”, “A menstruação é a saúde da mulher...”, como vemos no fragmento que se segue: “...quando uma mulher que não teve filhos não tem sua regra manifestada e esta não é capaz de encontrar caminho para fora, a mulher ficará enferma.” (Gynaicologia, 1º parágrafo do  capítulo 2)
Hipócrates – mesmo que saibamos que não existia tecnologia suficiente naquele tempo para isso – delineou aspectos do corpo da mulher em ampla comparação com o corpo do homem, demonstrando que a mulher possui uma certa fragilidade física, como já diziam os filósofos de sua época, e demonstra isso no seguinte fragmento: “Isto tenho para mim como antes disse, o referido, ser a carne da mulher mais macia e de aspecto delicado que a do homem”(Gynaicologia, 4º parágrafo do capítulo 1).  Ou ainda: “sendo o corpo (da mulher) mais úmido, vindo da cavidade do ventre em maior número e mais rápido que o homem, e sendo a mulher de carne mais delicada[...]Porque a mulher tem o sangue mais quente que o homem” (Gynaicologia, 6º parágrafo do  capítulo 1).
Nesse terreno sinuoso, encontramos uma mulher virgem ou que não teve filhos, que sofria de inúmeros distúrbios físicos e psicológicos quando não tinha relações sexuais ou quando sua menstruação faltava, como segue:
E, certamente, sofrerá mais com a falta da menstruação, a mulher vomitará inflamação, chegará forte sede, posto que ainda tendo inflamação da cavidade do ventre as partes internas do útero são enchidas de sangue e quando tocada (a mulher) sentirá dor, mais no abdômen; vez ou outra terá febre aguda,  é possível que na parte interna do útero faça barulho nas “tripas” vez ou outra por causa da agitação do sangue que não circula,  a cavidade do útero não dispersará para fora (menstruação); a urina purificará a bexiga; depois que o útero tiver encontrado a boca do estômago, que está nervoso, fazendo sentir um fluxo de dor na cavidade do ventre e em toda as costas; a língua da mesma pára e carecendo de movimento não fala; sentirá “mordidas” no estômago, originário do intestino grosso amarelento; sofrerá ao respirar; estará agitada e deixará cair em si mesma inflamação.
(Gynaicologia, último parágrafo, sintomas na mulher sem menstruação, tradução minha)

Outras somatizações podem ocorrer no corpo da mulher com a falta da relação sexual, como segue no fragmento:
O motivo pelo qual não ocorre este fechamento é essa mulher não ter relações sexuais. Em três meses ela se sentirá melhor, caso o fluxo menstrual saia antes. Entretanto, se não acontecer isto, a mulher sofrerá: algumas vezes serão sentidos falta de ar  por essa mulher e outras vezes será apoderada pela febre e calafrios, assim como uma dor na região lombar. Cada uma das regiões simétricas situadas de um lado e do outro da coluna vertebral, abaixo ou após das costelas; costas, dorso. É possível que se sinta sufocada e fique agitada (Gynaicologia, 9º parágrafo do Capítulo 2, tradução minha).

Como vemos, esses distúrbios que alguns julgam serem descobertas de Freud ou até mesmo de Jung, Hipócrates já explicitava no século V a.C em suas obras.
A partir desse olhar, direcionei minha pesquisa a comparar alguns fragmentos do texto de Hipócrates com a obra de Visconde de Taunay: Inocência.
Na obra de Taunay, encontramos Inocência uma menina virgem, de quinze anos e meio, cuja beleza era muito singular, mas que estava doente. Uma enfermidade que até seu pai, extremamente machista, acreditava ser obra de “mal olhado”, como podemos constatar no fragmento de Taunay: “[...]Nocência para nós está perdida...para nós, porque um homem lhe deitou um mau olhado...” (Inocência, Visconde de Taunay).
Nesse contexto complexo em que ninguém conseguia curar a jovem, aparece um rapaz muito atraente e doce que conquista o coração de Inocência.
Seu nome é Cirino, um “pseudomédico” que se dizia muito experiente em curar diversos tipos de enfermidades. Cirino é o típico charlatão, que se aproveita daqueles que estão doentes à espera de uma possível cura, quase que milagrosa:
Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, título inerente a sua pessoa e a que tinha incontestável direito. Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no
íntimo do seu caráter se haviam insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que sempre vivera.[...] Por toda a parte entra, com efeito, o doutor; penetra no interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesa dos hóspedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem caído do céu e junto ao qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já enfermos, mas fanatizados crentes, que durante largos anos se haviam medicado ou por conselhos de vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada desse Messias depositam todas as ardentes esperanças do almejado restabelecimento.
(TAUNAY, 1972, Capítulo III O DOUTOR, página 10)
Nessas circunstâncias Inocência, é uma  jovem que se encontrava muito próxima da morte. Quando ela conhece os “métodos” do médico ela apresenta um quadro de melhora considerável. O que para uns será um milagre, para àqueles que compreendem do assunto, Inocência se curou pela paixão que sentiu por Cirino.
-Como vai a doente? perguntou distraidamente Cirino, cortando aquela catadupa de palavras.
-Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, e parece quase boa. Está com outra feição. O sr. fez um milagre... (Pereira para Cirino)
(TAUNAY, 1972, Capítulo X A CARTA DE RECOMENDAÇÃO, página 24)
[...]
Quem sabe se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cirino não eram a causa única desse sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a florzinha do campo? A muito obriga a gratidão. Rápidos correram esses pensamentos pela mente de Inocência, ao passo que as suas pupilas se iam erguendo até se fixarem em Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando entrada para ele ler claro o que se lhe passava na alma.
-Sinto-me tão bem, disse ela com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca mais hei de ficar mofina.
(TAUNAY, 1972, Capítulo XIV A REALIDADE, página 34)
O problema todo da trama é que Inocência fora prometida para Manecão pelo seu pai. Manecão era um homem extremamente rude e grosseiro, ainda que Inocência desejasse sentir-se atraída pelo pretendente, seu coração já possuía um dono: Cirino.
Nessa atmosfera pesada, o pai de Inocência descobre a paixão da moça pelo “médico”, agride a filha no intuito de corrigi-la, mas Inocência vendo a impossibilidade da paixão adoece novamente.
É importante esclarecer que, paixão aqui segue a ideia de um típico “páthos amoroso grego” – raiz que deu origem à palavra patologia, e significa “aquilo que toca o ser provocando nele uma mudança” –, podendo ser somatizado no corpo, como no caso da jovem, promovendo o que ficou conhecido como histeria.
Segundo Sigmund Freud, “histeria vem da palavra grega hystéra útero, é uma psiconeurose cujos conflitos emocionais inconscientes surgem na forma de uma severa dissociação mental ou como sintomas físicos (conversão), independentemente de qualquer patologia orgânica ou estrutural conhecida, quando a ansiedade subjacente é 'convertida' num sintoma físico” (Dicionário de Psicanálise, Elisabeth Roudinesco/Michel Plon, página 204 Estudos sobre a Histeria)
A classificação de histeria se deve ao seguinte fragmento: “Inocência não aparecia. Mal saía do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto não era o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.” (Inocência, Visconde de Taunay)
Muito semelhante ao desfecho de uma tragédia grega, Cirino (o grande amor de Inocência) é assassinado brutalmente pelo homem a quem o pai de Inocência prometera sua mão. Após a notícia a jovem e bela rapariga morre de amor, como vemos no fragmento: “Inocência, coitadinha... Exatamente nesse dia fazia dois anos que seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade.”

Para concluir, o que podemos perceber com base nos estudos de Hipócrates, sobre as enfermidades causadas nas mulheres virgens que podem ser caracterizadas como histeria – é importante ressaltar que essa nomenclatura ainda não existia – podem servir de base para uma comparação com inúmeras obras literárias brasileiras. No entanto, não só a histeria como outras disfunções podem servir como comparativos. A imutabilidade dos paradigmas dá-se pelo fato, de que se Inocência tivesse se “casado” – aqui com a ideia de união sexual de dois amantes – como propõe Hipócrates, de maneira menos clara, talvez o desfecho teria sido outro: “Quando casar passa.” Para algumas doenças apenas o casamento seria a solução. O que temos, portanto, na obra de Visconde de Taunay, é a perpetuação de um paradigma clássico de que a mulher  para ter uma vida saudável precisa “alimentar” o ser que a rege, ou seja, o seu útero, e isso só é possível através da união sexual. Caso contrário, este animal interior a consumirá e a morte será  inevitável.
Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. De la génération dês animaux. Trad. Pierre Louis. Paris: Les Belles
Lettres, 1961.
DUBY, Georges & PERROT, Michelle. História das mulheres: A Antiguidade. Porto: Ed. Afrontamento,1990.
IPPOKRTHS. Peri_ gunaikei/wn prw~ton. Atenas: Kaktos, 1992.
PLATÃO. Diálogos: Timeu, Crítias, o Segundo Alcibíades, Hípias Menor. Belém: UFPA, 1986.
ROUDINESCO, Elisabeth/ PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise.Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
TAUNAY, Visconde de. Inocência. Editora Primor, Rio de Janeiro, 1972.

Tratados Hipocráticos. Traducción y notas por Lourdes Sanz Mingote. Madrid: Ed. Gredos, 1988.

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